O Conselho Norueguês para Refugiados (CNR) disse hoje que as dez crises de deslocados mais negligenciadas do mundo estão todas em África, sublinhando que, pela primeira vez, todos os países que se incluem essa lista são africanos. Alguém se preocupa? Se fosse na Ucrânia a coisa piava mais fino. Mas como em África somos quase todos uma subespécie…
A África lidera a classificação anual das crises de deslocados mais negligenciadas em 2021, elaborada pelo CNR, que em edições anteriores incluía países de outros continentes, como a Venezuela e as Honduras.
“O facto de as crises mais negligenciadas do mundo estarem todas na África indica o fracasso crónico dos agentes de decisão africanos, doadores (que doam uma salsicha depois de roubarem um porco) e dos média (para quem – não tenhamos medo das palavras – um branco vale bem mais do que 1000 pretos) em lidar com conflitos e sofrimento humano neste continente”, disse o secretário-geral do Conselho, Jan Egeland, citado num comunicado, segundo a agência de notícias espanhola EFE.
“Com a guerra absorvente na Ucrânia, receio que o sofrimento africano seja empurrado ainda mais para as sombras”, afirmou Jan Egeland. Ainda mais. Até porque os africanos morrem mas as riquezas africanas continuam intactas.
O CNR colocou a República Democrática do Congo (RD Congo) em primeiro lugar na lista dos países em que as crises de deslocados foram mais negligenciadas, pelo segundo ano consecutivo.
O nordeste da RD Congo tem sido afectado pela violência de grupos armados e conflitos intercomunitários, com um aumento acentuado dos ataques a campos de deslocados desde Novembro de 2021, a quem não faltam armas fornecidas pelo Ocidente.
“Agora, 5,5 milhões de pessoas estão deslocadas dentro do país e a insegurança alimentar atingiu o nível mais alto até agora registado, com um terço da população a passar fome”, destacou a organização.
A RD Congo é seguida no índice da organização humanitária pelo Burkina Faso, Camarões, Sudão do Sul, Chade, Mali, Sudão, Nigéria, Burundi e Etiópia.
O Burkina Faso, por exemplo, sofre com frequentes ataques terroristas desde 2015, uma insegurança que provocou o deslocamento interno de mais de 1,85 milhões de pessoas, segundo os dados mais recentes do Governo daquele país.
Apesar de um grande aumento de pessoas a verem-se obrigadas a fugir de casa no Burkina Faso, em 2021, a crise de deslocados recebeu substancialmente menos cobertura por parte dos média ao longo do ano do que a guerra na Ucrânia, em média, todos os dias nos primeiros três meses do ano, acrescentou o CNR.
“A guerra na Ucrânia mostrou a imensa lacuna entre o que é possível quando a comunidade internacional se une por detrás de uma crise e a realidade quotidiana de milhões de pessoas que sofrem em silêncio dentro nessas crises no continente africano que o mundo escolheu ignorar”, acusou Jan Egeland.
A lista anual de crises de deslocados negligenciadas é baseada em três critérios: falta de financiamento, falta de atenção dos média e falta de iniciativas políticas e diplomáticas internacionais.
As verdade de Mo Ibrahim
A Fundação Mo Ibrahim distingue, ou critica, a boa governação em África. O magnata britânico de origem sudanesa continua a dizer as verdades, mesmo quando o mundo olha para o lado e assobia. Ele, ao contrário de outros, sabe que a verdade dói mas cura. Mas, cada vez mais, os ocidentais receitam aos africanos placebos doados como sendo antibióticos.
Mo Ibrahim há muitos anos que responsabiliza as “falhas monumentais dos líderes africanos após a independência”, explicando sem meias palavras (coisa cada vez mais rara) que, “quando nasceram os primeiros Estados africanos independentes, nos anos 50, África estava melhor em termos económicos”.
Mo Ibrahim também diz que os interesses da Europa, por exemplo, apenas podem ser duravelmente garantidos pela democracia e não pelo apoio aos ditadores. O Ocidente resolve a questão fazendo eleger ditadores e, dessa forma, dando-lhes o rótulo de democratas.
“Se a Europa quer garantir a longo prazo os seus interesses, ela tem todo interesse em se aproximar dos povos africanos. Pensar que a conivência com os ditadores seria benéfica é um grande erro”, diz Mo Ibrahim.
Este empresário, que fez fortuna na telefonia celular ao criar o operador CELTEL que se tornou depois ZAÏN, já há muito que qualificou de “vergonhoso e um golpe à dignidade” a contínua dependência de África em relação ao ocidente, tendo em conta os “recursos impressionantes” que abundam no continente.
“Não se justificam a fome, a ignorância e a doença que assolam África”, diz Mo Ibrahim, para quem a solução terá de passar obrigatoriamente por “bons líderes, boas instituições e boa governação”, sem os quais “não haverá Estado de Direito, não haverá desenvolvimento”. É verdade. Mas é uma verdade que não interessa ao Ocidente para quem, desde sempre, é mais fácil e rentável negociar com ditadores do que com democratas.
Por isso recorda que “havia uma África na qual o Estado era o único proprietário dos meios de informação, na qual a única televisão pertencia ao poder, na qual toda a informação era controlada. Esta África já não existe”.
Por isso, “o que aconteceu na Tunísia e no Egipto nunca teria sido possível sem as tecnologias de informação e comunicação. Apesar dos esforços colossais, os Governos destes dois países não conseguiram impedir a circulação das informações. Nesta nova África, o povo é o único soberano e os nossos amigos europeus devem persuadir-se disso”.
Comparando o posicionamento europeu com o norte-americano, Mo Ibrahim entende que “os americanos escolhem geralmente muito claramente a democracia e a luta contra a corrupção na sua relação com os Estados africanos. Seria bom que os nossos amigos Europeus fizessem o mesmo”. Os europeus não só não fazem como tentam que os EUA também o não façam.
Em relação às posições da Europa, recorde-se por ser um exemplo paradigmático, que Margaret Thatcher, que em Maio de 1979 se tornou a primeira mulher a dirigir um governo britânico, proibiu nesse ano o seu enviado especial à Rodésia de se encontrar com Robert Mugabe.
E fê-lo para defender a democracia? Para lutar contra as ditaduras?
Não. O argumento, repare-se, era o de que “não se discute com terroristas antes de serem primeiros-ministros”.
“Não. Por favor, não se reúna com os dirigentes da ‘Frente Patriótica’. Nunca falei com terroristas antes deles se tornarem primeiros-ministros”, escreveu – e sublinhou várias vezes – numa carta do Foreign Office de 25 de Maio de 1979 em que o então ministro dos Negócios Estrangeiros, Lord Peter Carrington, sugeria um tal encontro.
Ou seja, quando se chega a primeiro-ministro, ou presidente da República, deixa-se de ser automaticamente terrorista. Não está mal. É verdade que sempre assim foi e que sempre assim será. Angola que o diga.
Folha 8 com Lusa